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As circunstâncias

No último domingo pela manhã, cevando um mate com o cusco dormindo sobre o pé, terminei de ler o livro "Salvar o Fogo", último do Itamar Vieira Junior. Esse foi o segundo livro que li dele, pois já tinha lido o "Torto Arado" ano passado.

Épico.

Como contar todas as estórias e a história em 317 páginas?

Ao "acompanhar" o nascimento de Moisés e "conhecer" a Luzia, do Paraguaçu, fiquei pensando na formação de cada um e refletindo sobre a minha própria... Me marcou muito quando li uma frase do filósofo espanhol José Ortega Y Gasset: "Eu sou eu e minha circunstância, e se não a salvo a ela, não me salvo a mim".

Quantos sonhos cabem dentro de cada um de nós? Existe um limite para o que se pode sonhar? Uma espécie de maturidade dos sonhos em detrimento da ingenuidade infantil de acreditar no coelhinho da Páscoa e esperar o Papai Noel descer pela chaminé a cada 24 de dezembro?

Fato é que a circunstância se sobrepõe à realidade. Acho que o plural seria mais assertivo aqui: as circunstâncias. Pois são elas, condicionadas e/ou condicionantes, aditivas e/ou negativas, alternativas e/ou imperiosas, adversativas e/ou concordantes, compassivas e/ou indiferentes, conclusivas e/ou duvidosas. Ao desatento, talvez possa parecer que é esta última que está acima daquela, só que é somente a partir daquela que se pode deparar com esta. Ou seja, a realidade só pode ser apreendida a partir da(s) circunstância(s).

O que é justo para mim, pode parecer injusto para ti. Nossa decisão por seguir este caminho, neste momento, pode soar equivocada para eles, mas para avaliar o (des)acerto e a (in)tempestividade dela, somente a posteriori. 

Não sei se dizer se o que precisa ser dito (ainda) ajudará. Muito menos se o como agir fará sentido, agora ou depois, mas, inadvertidamente, a decisão tomada é a partir de uma soma (finita ou infinita?) de situações vivenciadas, conhecimentos adquiridos, experiências sentidas, sentimentos decifrados, lições aprendidas, com uma pitada de intuição e uma boa dose de coragem, porque cada uma traz e trará as respectivas consequências, além de abrir uma possibilidade para o pueril consequencialismo.

Todos temos tormentas sobre as quais nunca ou raramente falamos, ou pensando melhor, acho que um pouco das duas. E mesmo assim elas estão ali, habitando o fundo de nossa alma, trancadas em nosso coração, silenciadas por uma decisão de (auto)preservação(?).

empatia é limitante, enquanto a alteridade é uma ponte. Mas para construir essa ponte, bom... precisa-se chegar do outro lado, não é mesmo? No e com o Outro. E isso nem sempre é possível, infelizmente...

Do livro, destaco:

"As cabeças de Zazau e do Menino balançavam à minha frente com os solavancos da van. O dia úmido me fazia suar feito cuscuz. Se metade do tempo eu pensava em como cuidaríamos do nosso pai quando voltasse para casa, na outra metade era o cortejo doloroso de recordações correndo em minha cabeça, e por isso eu repetia a mim mesma: nem me perguntem por que vocês não conseguirão acompanhar meu raciocínio. Não conseguirão sentir tudo o que senti porque nunca habitaram este corpo. Até você, minha irmã, uma mulher batalhadora, mulher de trabalho, é incapaz de compreender. Bom ou ruim, você tem um marido, tem seus filhos e não foi marcada com o Mal, nem carregou os mesmos fardos que eu, incluindo o que está nas minhas costas. E você, Menino, é agora um homem e as coisas pesam diferente. Não sabe o que se passa no coração de alguém como eu, alguém que teve que enfrentar o mundo sem nunca entender porque precisava ser assim. Então, eu aviso, Menino: não preciso do seu perdão, assim como espero que não precise do meu. Advirto também: depois de tudo o que eu vi naquele mosteiro assombrado, não precisamos do perdão de Deus nem Ele deve esperar que consideremos essa possibilidade. Esqueça, tire isso da sua cabeça. Se você ainda tem alguma mágoa, não a persiga, nem tente recordar todos os dias o mal que te fizeram. Você não é o mal que te destinaram, nem Luzia é o mal com que a desdenharam".

Ah, as circunstâncias... e cadê essa alteridade, afinal? Ou ab initio, para ser (mais) justo, quiçá.

Por isso precisamos vasculhar a integridade das poucas e verdadeiras coisas que nos parecem importantes para sermos-no-mundo. Porque se sobreviver é aprender a domar os medos, viver é ter a coragem de libertar as tormentas.

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